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Uma questão de muros e manchas

Recentemente, em um ponto de embarque de transporte escolar da cidade, utilizado por estudantes da zona rural, uma pichação num muro me chamou atenção: “CANTO DOS DA ROÇA”, escrito assim, com letras grandes e negras. Logo que li, vieram-me duas questões: o que leva um sujeito a comprar uma lata de tinta spray para escrever essa frase na parede? E o que faz de um homem inferior a outro?


A frase, que claramente denota desprezo de algum habitante da área urbana pela população rural, carrega implícitos sentimentos ainda mais preocupantes que inacreditavelmente sobrevivem há séculos manchando as páginas da nossa História. O preconceito, fruto da ignorância e da intolerância, revela-se tão presente quanto antes em nossa sociedade cada vez mais egoista, e a evolução que afirmamos sofrer, parece ficar restrita a aspectos materiais como a ciência e a tecnologia, não abrangendo o campo antropológico.


Não creio exagerada a comparação do ato com manifestações segregacionistas como no gueto de Varsóvia ou do Apartheid. O que se lê nas entrelinhas dessa mensagem é exatamente o mesmo ódio nutrido por certos grupos étnico-raciais de outrora, que resultou no isolamento de outros grupos minoritários, impondo-lhes restrições e torturas, culminando em genocídios, tais como no Holocausto.


Examinemos a frase “canto dos da roça”. Segundo o Dicionário Michaelis Online, uma das ascepções do substantivo canto é “lugar esconso, retirado ou solitário”. Ora, não era análoga a atitude nazista em relação aos judeus, reservando-lhes um canto para que vivessem separados da raça “superior”? Notemos também que há uma elipse no enunciado: “dos da roça” suprime o termo estudantes (alunos/homens) entre o artigo e seu complemento, o que representa uma brutal tentativa de anulação desse grupo. Por fim, “da roça” faz menção à principal atividade profissional do homem do campo, a agricultura de subsistência, revelando igual desdém e discriminação por essa gente.


O IBGE, a partir do censo demográfico de 2010, aponta que no Brasil 15,6% da população reside em áreas rurais, enquanto em Itaberaba este índice alcança a marca de 22%, entretanto, nem sempre foi assim. Se observarmos um passado não muito remoto, cerca de 50 anos atrás, a população brasileira ainda era predominantemente rural, como registram Alberto Aggio, Agnaldo Barbosa e Hercídia Coelho em Política e sociedade no Brasil, 1930-1964. A obra explica esse êxodo afirmando que “entre 1930 e 1960 o Brasil passou por um processo de urbanização acelerada, ocasionando o deslocamento de grande contingente da população do campo para a cidade, geralmente para trbalhar na florescente indústria” (2002, p. 86).


Na contra-mão desse movimento migratório citamos a expressão fugere urbem, que em latim quer dizer “fugir da cidade”, usada originalmente pelo poeta e filósofo Horácio e lema do movimento árcade, que dentre outros ideais, pregava a evasão dos centros urbanos para uma vida bucólica. Em consonância com a atitude do Arcadismo há a teoria do homem natural de Rousseau, que afirma que em sintonia com a natureza o homem é pleno e bom e a sua experiência na cidade o corrompe.


Partindo desse princípio, podemos deduzir que foi essa retirada do campo para a urbe que afastou o homem de sua plenitude, impondo-lhe esse comportamento hostil e individualista. Consequentemente, intensifica-se na sociedade brasileira essa postura oposicionista que constatamos com aquela frase no muro, o que talvez responda a primeira pergunta do texto. As ações discriminatórias ultrapassam limites, chegando a aspectos não apenas sociais, mas também culturais como, por exemplo, o preconceito linguístico, tese defendida pelo filólogo Marcos Bagno, que aborda os fenômenos das variantes no uso da língua e sua recusa por um grupo majoritário de falantes.


E quanto ao nosso outro questionamento? O fato de personalidades da grandeza do rei do baião Luiz Gonzaga, do ator Walmor Chagas, do poeta Castro Alves, do sanitarista Carlos Chagas, do ativista Chico Mendes e do artista plástico Cícero Dias terem nascido em propriedades rurais afasta absolutamente a ideia de inferioridade do homem do campo. Aliás, além de toda a contribuição intelectual e cultural que herdamos das celebridades acima citadas, basta que imaginemos um mundo sem produção agrícola ou pecuária para que notemos os prejuízos à nossa sobrevivência na Terra. Tais conjecturas nos levam a concluir que em nenhuma esfera se apequena o camponês, restando-nos, destarte, a dedução de que o sujeito dominado por uma visão preconceituosa e aprisionado pelos muros pichados de seu egocentrismo é quem se auto-inferioriza.


Recordemos, por fim, os primeiros versos de Casa no campo de Rodrix e Tavito: “Eu quero uma casa no campo / Onde eu possa compor muitos rocks rurais”. Quiçá compreendêssemos a força dessa mensagem para com força semelhante transformarmos o sentido pejorativo do “canto” (esquina, recanto) em canto, do verbo “cantar”, e assim cantarmos os muitos rocks rurais que o mundo carece de ouvir.


Cleber Teixeira


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