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A morte sobrevive


"Eu vi a cara da morte

E ela estava viva"

(Cazuza)

Manuel Bandeira, em seu poema Consoada, deu à morte o melhor apelido que conheço: “a indesejada das gentes”. Mais tarde e menos inspirado, eu a chamei de “última visita” num soneto qualquer. O fato é que a morte parece exercer sobre os artistas uma sedução irresistível, obviamente mais perceptível em uns que em outros, mas uma hora ela acaba surgindo personificada numa obra, quando não como a própria protagonista.


Desde a Antiguidade, a morte é representada sob todas as formas de arte e em diversos momentos ela atingiu uma posição de destaque no panorama cultural. A Grécia antiga banhou o Ocidente de sangue com suas tragédias mitológicas. O teatro elisabetano ressignificou o sentido catártico da morte e legou ao mundo outro gênio sanguinário: Shakespeare. Já no Romantismo, a morte assumiu um protagonismo jamais visto, associando-se ao “mal do século” e sendo cultuada por toda uma geração de poetas soturnos com sérias tendências suicidas.


Acontece que de maneira alguma a temática da morte conseguiu se esgotar. Na literatura contemporânea, por exemplo, ela segue firme, quase tão querida quanto o amor ou a miséria. Sob novas e inusitadas perspectivas, a morte reaparece com outras máscaras, armas e veículos, com propósitos diversos dos de outrora – ou mesmo sem nenhum – resiste aos tempos, à ciência e às religiões, aos modismos e às crises. A morte sobrevive.


Para evitar spoilers, excluirei aqui alguns exemplos de obras em que a morte tem papel importante, dos quais tratarei futuramente, e vou me deter em outros, onde ela já aparece no título: A morte e a morte de Quincas Berro d'Água (1962), de Jorge Amado, Crônica de uma morte anunciada (1981), de Gabriel García Márquez, e As intermitências da morte (2005), de José Saramago.


Na narrativa de Jorge Amado, a morte se afirma tão veementemente que acomete a sua vítima, Quincas, pelo menos duas vezes. Quando finalmente sua saúde se esgota devido aos excessos da vida boêmia que decide levar, a morte vem lhe cobrar o corpo. Sua alma vadia, entretanto, insiste em zombar da hipocrisia da sociedade e sai pelas ruas da Bahia numa peregrinação às avessas até encontrar o descanso eterno nas águas do mar. Disse “pelo menos duas vezes”, mas como não chamar de morte a cena trágica em que o ilustre funcionário público Joaquim Soares da Cunha deixa a casa e a família pra dar vida ao vagabundo Quincas?


Já na novela de García Márquez, temos não mais uma morte múltipla, mas a morte certa e impiedosa que vem pelas mãos homicidas dos irmãos Vicário para vingar a desonra da irmã Ângela; esta acusa injustamente Santiago Nasar para livrar o misterioso culpado. Por mais anunciada que seja, a ponto de alarmar toda a cidade, Santiago não consegue escapar nem ao menos tomar ciência dessa vingança que culmina com seu assassinato em praça pública. O autor colombiano cria um ambiente de apoteose da morte, ressaltando sua força inevitável e sua gadanha tão cega quanto a Justiça.


E se a morte fosse suspensa? A primeira (e genial!) frase do romance As intermitências da morte, “No dia seguinte ninguém morreu”, sugere essa fantástica possibilidade, levando o leitor a uma profunda reflexão sobre morte, vida e humanidade. Como reorganizar a sociedade desprovida dos benefícios que a morte traz e que noção de ética aplicar àqueles que estão no meio do caminho, como os doentes terminais? A personificação da morte na obra de Saramago ironiza os valores sociais, questionando o comportamento humano diante dessa eterna(?) algoz e pondo em xeque a relação tão bem estabelecida entre as partes desde o início dos tempos.


Nessas três representações da morte, que compreendem um intervalo de pouco mais de 40 anos e três países de expressiva produção literária, percebemos como a temática permanece fértil e como os autores encontram soluções criativas para abordá-la. Múltipla, certa, suspensa, discreta, noturna ou matinal, a hora da estrela, a hora mais escura, a hora da morte… O que ela tem de indesejada não lhe oculta nem lhe empobrece. Ela não é velha, é vintage.


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