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Literapêutica


Desde a Antiguidade o conceito, as funções e as consequências da literatura são objeto de interesse de filósofos e teóricos que bastante já contribuíram nessa investigação, sem, no entanto, chegarem ao final dessas discussões, o que, aliás, não foi a principal intenção da maioria desses autores. A propósito dessa problemática, mais uma questão nos perturba: de que substância é feita a literatura?

Considerando a resposta óbvia de que é a palavra sua matéria-prima, refutaremos – por hora – esta imediata associação, tentando discutir um pouco mais profundamente o assunto, posto que também de palavras são feitos os manuais, as enciclopédias, as bulas, os contratos etc., e nenhum desses documentos nos provoca nada semelhante à experiência literária.

Então, o que realmente difere os poemas e a ficção dos demais textos? Em que momento a arte se apropria do secreto para mobilizar autor e leitor a esse universo paralelo que nos apreende e transforma? E, mais do que tudo, que poder tem a literatura diante da supremacia do homem no mundo?

Um dos primeiros de que temos conhecimento a perceber a força da arte da palavra há mais de 300 anos a.C. foi Aristóteles. Em sua Poética, o filósofo trata da dramaturgia grega na antiguidade, estabelecendo seus conceitos e características. Mas é nessa obra que um certo fenômeno é descrito e que até hoje nos serve de base para esta e tantas outras investigações: a catarse. Segundo Aristóteles (2011, p. 35), a catarse ou “purgação” é o efeito obtido através da representação (mímesis) de uma ação trágica, causando no espectador a compaixão e o terror, ou seja, o clímax emocional com resultado purificador. Para o pensador grego, o desfecho trágico está associado à remição, libertação.

Enquanto o fluxo da interferência transformadora da literatura, em Aristóteles, dá-se da obra para o público, em Freud o encontramos também em sentido inverso, da obra para o escritor. Relacionando a experiência lúdica da criança com a atividade criativa do escritor, o pai da psicanálise observa outros fenômenos que têm origem a partir da arte literária. Para ele, o ato de “fantasiar” do escritor assemelha-se ao devaneio, que por sua vez constitui-se como uma válvula de escape dos conflitos interiores, ou como uma tentativa de realizar – no plano do inconsciente – os desejos reprimidos ou frustrados (FREUD, 2011).

A teoria freudiana encontrará reflexos anos mais tarde em Castagnino, que na sua tentativa de definição da literatura apontará como função desta, dentre outras, a evasão, porém, apresentando-nos este viés de maneira um pouco mais ampla, tanto no que diz respeito ao autor, quanto ao leitor. Para este autor, a criação literária tanto oferece ao escritor um veículo de fuga como pode transportar aquele que lê a um espaço imaginário de conforto e solução (CASTAGNINO, 1969).

Ainda na busca do elemento essencial de que se constrói esta arte, citemos mais um autor com importante abordagem a respeito. É, talvez, Todorov (2009) quem melhor sintetize a fenomenologia da literatura até os dias atuais, descrevendo sua capacidade com incrível sensibilidade e precisão no seu ensaio intitulado “A literatura em Perigo”. Ao tratar do que pode a literatura, o estruturalista búlgaro nos brinda com exemplos marcantes das propriedades terapêuticas e psicanalíticas da palavra e confere a ela poderes curativos a partir de experiências pessoais ou relatadas por outros autores.

Em conformidade com esses pensadores, a psicologia moderna já se utiliza desses métodos na prática clínica conhecida como biblioterapia, que consiste na prescrição médica de leituras literárias no tratamento de diversas patologias, obtendo-se comprovadamente resultados satisfatórios em pacientes com certos tipos de distúrbios psíquicos. É a comprovação científica da observação que desde Aristóteles acompanha os estudos literários.

Não obstante, na esfera religiosa a palavra sempre foi sinônimo de poder transformador. Lembremos, p. ex., do versículo que abre o Evangelho de João (que por sua vez remonta ao Gênesis) e que devido ao seu caráter sintético dispensa exegese: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus.” (Jo 1, 1). Mais um exemplo nos parece peculiar: as milagrosas pílulas de Frei Galvão. Diz a fé católica neste santo brasileiro que ao ingerir os papelotes que contém a sua oração uma cura é alcançada por milagre do beato. Ora, se até pelo consumo (via ingestão) a literatura é benéfica e possui propriedades curativas, como não haveria de tê-las pela leitura ou pela escrita?

Porém, apesar de tais constatações, a dúvida geradora dessas especulações permanece irresoluta: de que substância – afinal – é feita a literatura? Será de sonhos, que segundo Shakespeare é a matéria de que nós próprios somos feitos? Será de paixões, ou de magia, ou de qualquer partícula sagrada que se condensa nas palavras no ato sublime da arte? Tanto nos ocorre e nada se nos manifesta. Por fim nos resta como consolo a seguinte posologia: automedicação com doses cavalares de Machado de Assis, sangrias de Álvares de Azevedo e curativos de João Ubaldo, pois apesar de causar dependência, não há outros efeitos colaterais.

Referências bibliográficas:

ARISTÓTELES. Arte poética. São Paulo: Martin Claret, 2011.

CASTAGNINO, Raúl H. Que é literatura? São Paulo: Mestre Jou, 1969.

FREUD, Sigmund. Obras completas - vol. 8 - O delírio e os sonhos na Gradiva, Análise da fobia de um garoto de cinco anos ("o pequeno Hans") e outros textos (1906-1909). São Paulo: Schwarcz, 2011.

JOÃO. In: https://www.bibliaonline.com.br/acf/jo/1 - Acessado em 18/03/2015.

TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. Rio de Janeiro: Difel, 2009.




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