top of page

Confissões de um leitor



Aqui seguem algumas impressões que a literatura tem me causado e que gostaria de compartilhar.


Primeiramente, confesso que achava que ficção era sinônimo de mentira (assim como muita gente pensa que jornalismo ou História equivalem à verdade), então foi muito estranho quando li "A metamorfose" pela primeira vez e vi que Gregor e o monstruoso inseto em que se transformou são tão reais quanto aqueles asquerosos amputados que nos estendem a mão sentados nas calçadas e fingimos não ver enquanto passamos perfumados e apressados a cuidar das nossas relevantes vidas. Achei até meio frustrante entender que há muito mais verossimilhança no realismo mágico latino-americano que no discurso sóbrio e irretocável de tantos líderes políticos.


Em segundo lugar, há outro aspecto desconfortante que minhas leituras me fizeram analisar: que quanto mais eu queira ser reflexo do herói, é o vilão quem me sorri no espelho da literatura. Há em mim um grau de identificação nas ações antagônicas e no caráter problemático dessas personagens que me alerta de que nem sempre nossa conduta é a mais ética e acertada. Voltando a Kafka, sinto-me, às vezes, como o cabo da vassoura que traspassa a rígida membrana do inseto Gregor Samsa o deixando naquele estado semivegetativo. Quase sinto saudade dos tempos que meu universo literário se resumia a magos e alquimistas em suas aventuras heroicas de final triunfante.


A porta do livro me leva inicialmente a esse universo leitoso, que me lembra aquela cegueira branca do romance de Saramago, só que mesclada aos filetes do café filosófico das palavras, para depois escancarar na minha frente toda luz do dia e as trevas da noite e a escuridão do dia e o néon da noite, tudo de uma vez como o diabo na rua no meio do redemoinho. Olhar o mundo pelo prisma da literatura é vê-lo com um colorido nem sempre harmonioso, por vezes até em preto e branco ou sépia, nunca transparente, sempre transfigurado. Pode ser também como no olho mágico do frenético fugitivo anônimo do "Estorvo" de Chico Buarque, que vê o outro como um homem côncavo do lado de fora. É também o prazer silencioso do voyeur, mas sem riscos nem penas.


Mas é uma porta mágica de sentido múltiplo, que me leva, sobretudo, em direção a mim mesmo. Como sabem tanto de mim esses homens e mulheres que "inventam" essas histórias? Que importância posso ter eu no mundo para ser objeto de tantas narrativas de "ficção" escritas nas mais diversas línguas e épocas? E por que ora me dão espadas, ora me vestem de índio, ora me lançam ao mar e depois me prendem no sertão? Uma noite eu dormi no trapiche e acordei no Taj Mahal! Vou-me embora pra Pasárgada. Se sou amigo do rei, só vou descobrir na última página.


É essa experiência psicanalítica que mais me tem seduzido na leitura dos clássicos. Em nenhuma outra atividade humana jamais encontrei tamanha aplicabilidade ao socrático "conhece-te a ti mesmo". Ao me ver traduzido nas obras, sinto-me confortavelmente instalado num divã, rememorando situações oníricas enquanto me analisam os desejos latentes. Freud de celulose. Jung em domicílio. Lacan de cabeceira.


Assim, sigo a desvendar e ser desvendado pelas belas-letras, percorrendo estradas longas como Humbert Humbert a guiar Lolita, desbravando paisagens áridas que nem Riobaldo de mãos dadas com Diadorim, combatendo as demandas de D'Artagnan, as pelejas de Quaderna, os gigantes do Quixote... Bem-aventurados os ficcionistas, pois o próprio Cristo foi um dos bons; lembrai-vos de vossas parábolas. Guia-me, Senhor. Abre os caminhos, ó Musa. E livrai-nos das pedras no meio do caminho.


Destaque
Tags
Nenhum tag.
bottom of page